Uddhava perguntou:
Ó Krishna, muitos dos mortais sabem que o contato dos gunas objetivos (objetos, coisas) com os gunas sensoriais (sentidos) geralmente é fonte de perigo e perdição. Por que, então, os homens se deliciam com tal contato, como fazem um cão, um asno ou uma cabra? (Bhagavata Puranas – capítulo 7 – versículo 8).
Vejam que tema interessante será abordado hoje. Uddhava, discípulo que conversa com Sri Krishna nesse texto, faz a pergunta que todos vocês me fazem. Ele pergunta ao mestre por que o homem que já tem notícias da influência do pensamento sobre a vida, o que é o caso de vocês, aceita esta influência?
Em essência é exatamente esta a questão que vocês levantam quando me perguntam: ‘já entendi tudo, mas por que não consigo colocar na prática?’ Através da resposta de Krishna, buscarei responder, de uma vez por toda, pelo menos para nosso grupo, aos questionamentos mais freqüentes de vocês: como se faz a reforma íntima para alcançar a elevação espiritual? Como se consegue levar à prática tudo o que temos estudado?
O Bendito Senhor disse:
No coração daquele que não está atento e que não discerne, de forma aparentemente espontânea levanta-se o pensamento de eu e meu; depois disso, uma horrenda tendência rajásica se apodera da mente de tal homem (atividade egocêntrica e egoísta), que, originalmente, será sáttvica (ou pura e impessoal).
E o pensamento, arrastado pelas tendências rajásicas, cobiça os desejos que reforçam aquele, graças a toda espécie de raciocínio. E, depois de muito insistir nas qualidades supostamente atraentes de uma coisa (pensada), o néscio passa a sentir por ela uma ânsia veemente e desordenada.
Dominado por esta ânsia, o homem, incapaz de dominar-se, passa a executar ações intencionais, cujos frutos lhe produzirão futuros sofrimentos, tão embotado fica pela violenta tendência rajásica.
E, no entanto, ainda que se sinta perturbado pelas tendências rajásicas e tamásicas, o homem de Reto Discernimento dá-se conta dos males que essas tendências acarretam. Por isso, concentra sua mente em Mim, sem se apegar a vícios ou virtudes e tampouco cede aos ímpetos de sua confusão pensada.
Vigiando seus próprios pensamentos, sem esforço algum e mantendo-se alerta, convém que o homem, nas horas apropriadas, controle sua postura e respiração e, abandonando-se totalmente ao Ser, concentre a sua mente em Mim.
Somente assim os pensamentos (gunas) se retiram dos objetos (gunas) que eles mesmos criam e a mente (já não mais personificada) consegue, então, absorver-se realmente em Mim. (idem – versículos 9 a 14).
Como disse, nesta resposta de Krishna está ensinada toda essência da reforma íntima. Vamos entendê-la…
O mestre começa a resposta dizendo que toda perdição (vivência da vida carnal sem o sentido da elevação espiritual) inicia-se quando o ser humanizado, por desatenção, acredita (dar o valor de real, realidade) nos pensamentos fundamentados no eu ou no meu que são gerados pelo ego.
O que são pensamentos fundamentados nestes pronomes? Paixões: eu sei, eu gosto e é meu…
Todo pensamento que começa a partir destes três elementos e é aceito como real pelo ser humanizado que não está atento ao seu trabalho de reforma íntima (alterar os frutos de seu íntimo), sofre a influência do guna rajas (qualidade de pensamento que se caracteriza pela obsessão de agir), ou seja, sofre a tendência de gerar um novo pensamento, que contenha a necessidade de agir.
Compreendam bem o ensinamento de Krishna. Todo pensamento, formado a partir do eu ou do meu, que diga respeito a qualquer elemento do Universo, leva a um novo pensamento que embute em si uma necessidade de agir, seja esta ação executada por você mesmo ou por outros. Quem está descuidado com o pensamento que diz, por exemplo, que essa cadeira é dele, ou seja, aceita a posse expressa através da paixão pela cadeira como real, estará logicamente sujeito a um pensamento que diz que ele deve agir sobre a cadeira protegendo-a, dando-a, limpando-a, arrumando-a, etc. Não importa qual a ação seja exigida: o próximo pensamento trará em si uma determinada obrigação de você ou alguém praticar uma ação que reflita a posse e a paixão.
É isso que Krishna ensina a Uddhava. Mas, é interessante repararmos que o mestre também diz que o primeiro pensamento, aquele que determinou a posse e a paixão, foi, primariamente, originado com qualidades de bondade e amor (gerado com o guna sattva). Só depois, ou seja, quando o ser humanizado, por desatenção, aceitou como real a possessão, ele sofreu a influência da tendência rajas. Vamos entender isso…
É aquilo que temos falado durante todos estes anos de estudo: o pensamento cria a provação que o espírito vem realizar durante a sua encarnação. Por isso ele é a materialização do amor de Deus por este ser, já que, com isso, está proporcionando uma oportunidade para que este filho realize o trabalho da libertação (reforma íntima).
Dessa forma, o pensamento que originou todo o processo era bondoso, mas, quando o ser humanizado não se reforma (liberta-se da influência das suas verdades relativas), sofre a obsessão de vivenciar uma ação. É exatamente o que Paulo diz na Carta aos Romanos: quando o ser humanizado não dá a Deus o seu Real valor (Senhor do Universo, Causa Primária de todas as coisas), Ele se entrega às relações artificiais, que são uma vergonha para a coletividade espiritual (relação com os elementos do mundo através da possessão).
Esta entrega de Deus (deixar que o ser humanizado acredite no que o ego cria) se reflete, então, num novo pensamento que conterá a necessidade de uma ação. Mas, esta ação não acontecerá, a menos que Deus, utilizando-se da Causa Primária crie, através de maya, uma ilusão que forme tal ação.
No entanto, o ser humanizado, dominado pela tendência da necessidade de uma ação, entra num processo de agonia, já que quer agir e muitas vezes não consegue. Mas, mesmo que Deus crie a ilusão da ação acontecer, a agonia não terminará, pois um novo pensamento com qualidade rajásica se instalará e gerará, novamente, a necessidade de outra ação. Todo esse processo continuará e cada vez mais o ser humanizado acreditará na qualidade rajásica de seus pensamentos e exigirá a necessidade de maya espelhar a ação esperada. Esse processo gera uma eterna agonia, pois, às vezes, a obsessão é atendida e outras não. É exatamente a vivência desta agonia que reflete o distanciamento do ser humanizado de Deus, pois aquele que se aproxima do Pai vive a felicidade que Ele tem prometido.
Foi isso que Krishna respondeu a Uddhava neste texto. O ser humanizado desatento aceita a possessão (é meu, eu sei, eu gosto) e a paixão que o ego cria apenas como prova, como se fosse real. Quando isso acontece, o ego, numa segunda etapa, exige uma ação e a condiciona a um determinado desejo. Dessa crença na necessidade da ação e na esperança que ela satisfaça as vontades deste ser é que vem a agonia de esperar que o desejo seja transformado em atos…
Aí está como eu disse, a resposta às perguntas que vocês fazem constantemente. Aquele que quer ser senhor da mente, promover à sua reforma íntima e elevar-se espiritualmente, precisa estar, primeiro, atento às formações mentais e segundo, durante esta atenção, reconhecer as paixões oriundas de possessões que o ego cria. A partir do momento que reconhece como tal, tratar estas verdades ditadas pelo ego como prova e não como realidades…
Colocando este ensinamento dentro do exemplo que dei, o ego diz que determinada cadeira é sua, que você gosta dela e que, por isso, quer que ela fique aqui. Neste pensamento estão presentes as posses moral (saber), sentimental (gostar) e material (propriedade) agindo em conjunto com a paixão (cadeira) e um desejo específico (ficar aqui).
Reconheça que este pensamento é apenas uma declaração expressa das posses, paixões e desejos presentes no seu ego, para que você possa realizar o trabalho da reforma. Faça isso não acreditando que o conteúdo destas afirmações é verdadeiro…
Entenda que tudo isso (a existência de posses, de paixões e de desejos e a utilização deles pelo ego em pensamentos) não é real, mas apenas uma prova que Deus está lhe dando para que você possa reformar o seu íntimo e, com isso, alcançar a elevação espiritual…
Apesar de estarmos lendo um texto védico que contêm ensinamentos de Krishna, o que estamos falando é do tema máximo que Cristo ensinou e exemplificou como o caminho, a verdade e a vida que leva a Deus: o despossuir os bens materiais…
Sabe, filhos, tem uma música de vocês que diz: assim: “a lição sabemos de cor, só nos falta aprender” (Primavera – Beto Guedes). Esta afirmação é perfeita…
Cristo ensinou que é necessário despossuir os bens materiais e todos que leram o Novo Testamento sabem disso – ou melhor, leram sobre isso. Mas, apesar de saberem, ninguém aprendeu de verdade este ensinamento porque não reconhecem o que é a possessão e o que possuem. Como então despossuir?
Possessão é tudo aquilo (as paixões) que são tratadas pelo pensamento a partir dos pronomes eu e meu. É qualquer declaração mental onde entre um eu (acho, sei, gosto, amo, tenho vontade) e um meu (é minha coisa). Em qualquer raciocínio onde estejam presentes esses dois elementos o que existe ali é a expressão de uma posse de um objeto. Esta posse é uma paixão mundana, já que é uma paixão motivada por elementos materiais (pelas posses).
A posse, seja de qualquer um dos três tipos, por qualquer coisa (objetos, pessoas ou acontecimentos) externada através de um pensamento, lhe é dada como uma oportunidade de despossuir. Ela não é real, ou seja, nada é seu, de nada você gosta ou sabe realmente.
Deus não lhe dá a cadeira, a casa, o cachorro, o marido, a mulher ou o filho. Tudo é dele, tudo é Ele. Ele não lhe dá, mas coloca, através do poder de maya, à sua disposição para justificar racionalmente o pensamento formatado a partir do eu e do meu para que você tenha a grande oportunidade de despossuir.
Agora está completa a resposta às eternas perguntas de vocês…
O que é o trabalho de reforma íntima? É o trabalho de libertação das realidades criadas pelo ego (despossuir), o trabalho de reformar a sua forma de relacionar-se com o ego…
Como realizá-lo (como despossuir)?
Primeiro: reconhecendo que você é um possessivo por natureza.
Segundo: reconhecendo as paixões que a possessão gera (o que é seu, o que você sabe e do que gosta ou desgosta).
Terceiro: silenciando a obrigação da ação fruto da paixão…
Vivendo com atenção plena às suas formações mentais através de um esforço correto, o ser humanizado pode atingir a compreensão perfeita da realidade (tudo o que o ego diz é apenas uma prova onde o possuir está sendo testado).
NOTA: Os três elementos citados neste parágrafo (atenção plena, esforço correto e compreensão perfeita), fazem parte do Nobre Caminho Óctuplo ensinado por Buda como àquele que leva à elevação espiritual.
Com isso silencia-se o poder da paixão que está expressa no pensamento e consegue-se viver a essência sáttvica que o gerou. Consegue-se, ainda, eliminar a influência rajásica (a obsessão de haver uma ação) e, com isso acaba-se com o processo obsessivo da exigência da ação que leva à agonia. Tudo isso somado, deixa o espírito vivenciar a felicidade que Deus promete aos seus filhos: a felicidade incondicional, a glória de Deus.
O ser humanizado não vive a felicidade incondicional não é por causa das ações que ele vivencia como agente ou receptor. A simples expectativa, criada pela qualidade rajásica, de que tem que haver ações em conjunto com determinados desejos, que surgem naturalmente quando existem possessões e paixões, já leva o ser humanizado à agonia, pois ele não sabe se ação gerada por maya (inescrutável poder de Deus de criar realidades ilusórias – Causa Primária das coisas) atenderá sua vontade e expectativa.
Quem sabe, por exemplo, que a casa é sua, sabe como ela deve ser limpa e por isso espera uma determinada ação: aquela que espelhe a limpeza que acha que deveria ser realizada. Este ser viverá em constante agonia esperando que este desejo se concretize.
Quem sabe que o filho é seu e que por isso acha que tem o direito de comandar o destino dele, entra na obsessão da ação gerada a partir de suas vontades. Apesar de acreditar que sabe o que é melhor para este filho, o ser humanizado que vive estas criações mentais como realidade tem a plena consciência de que muitas vezes o que ele espera nunca acontecerá. Por isso a agonia constante…
Por tudo isso que vimos aqui, afirmo: o conhecimento gerado a partir desta resposta de Krishna é fundamental para nosso estudo e é, também, para a vida daquele que quer se diz buscador de Deus.