Do capítulo anterior ficou uma grande dúvida: o ser humano é um fantoche? Se o espírito encarnado não pode ser agente dos acontecimentos de sua existência terrestre, mas apenas protagonista de momentos criados por Deus, então ele não é nada mais do um robô teleguiado. Desta forma, como fica o livre arbítrio, ou o poder de escolha do espírito?
A vida carnal não existe como realidade para o espírito: ela é apenas uma etapa da existência espiritual. A realidade do espírito é muito diferente dos acontecimentos que os seres vivenciam quando estão na carne.
Por trás de cada acontecimento existe uma essência, ou alguma coisa que o espírito precisa alcançar para universalizar-se. Exemplifiquemos: uma pessoa dirigindo calma e tranqüilamente vê-se em uma situação difícil porque outro não está dirigindo da mesma forma. Isto é o que o ser humano consegue ver quando leva uma “fechada” de outro carro.
Por ter esta visão restrita, ou seja, estar preso às suas percepções, o ser humano não compreende a essência do acontecimento. O que aconteceu ali não foi um ato de desatino ou desatenção do motorista, mas o carma de cada um em ação, que serve, também, de prova a todos os envolvidos.
Aquele que deu a “fechada” mereceu este papel na peça, mas quem o recebeu também. Utilizando-se do carma (reação a ações anteriores) Deus provocou o ato para que os seres envolvidos, vendo a essência do ato, possam exercer seu livre arbítrio e purificar-se.
A essência de um ato sao os sentimentos que estão envolvidos com o acontecimento. Existem sempre dois grupos de essências: individualistas ou universalistas, espiritualistas ou materialistas, cumprimento de lei ou consciência amorosa. O ser humano pode achar-se injustiçado e desarmonizar-se com o próximo acusando-o, ou pode harmonizar-se perfeitamente não culpando ninguém para não feri-lo.
“851. Haverá fatalidade nos acontecimentos da vida conforme ao sentido que se dá a este vocábulo? Quer dizer: todos os acontecimentos são predeterminados? E neste caso, que vem a ser do livre arbítrio?”.
“A fatalidade existe unicamente pela escolha que o Espírito fez, ao encarnar, desta ou daquela prova para sofrer. Escolhendo-a, instituiu para si uma espécie de destino, que é a conseqüência mesma da posição em que vem a achar-se colocado. Falo das provas físicas, pois, pelo que toca às provas morais e às tentações, o Espírito, conservando o livre arbítrio quanto ao bem e ao mal, é sempre senhor de ceder ou resistir”.
A partir deste ensinamento podemos falar em dois livres arbítrios: o dos fatos (gerar os acontecimentos da vida) e o sentimental (escolha de sentimentos para vivenciar os fatos). O ser universal possui os dois: o poder de construir os fatos de sua vida e a capacidade de escolher como vivenciá-los. No entanto, os dois não ocorrem no mesmo momento.
Antes da encarnação o ser, ainda com a consciência espiritual, guiado pela busca do espiritualismo, ecumenismo e universalismo, programa todos os atos de sua existência. Faz isto não apegado à forma dos acontecimentos, mas criando essências que sirvam de provas para que possa elevar-se.
Para o espírito não importa a situação social que vá nascer, os bens que irá possuir, a fome que passará. Ele sabe que tudo isto é ilusório. Está preocupado em criar essências que combatam os seus vícios espirituais, ou seja, a individualização do amor de Deus.
“260. Como pode o Espírito desejar nascer entre gente de má vida?”.
“Forçoso é que seja posto num meio onde possa sofrer a prova que pediu. Pois bem! É necessário que haja analogia. Para lutar contra o instinto do roubo, preciso é que se ache em contacto com gente dada à prática de roubar”.
Os acontecimentos da vida carnal não existem pela sua forma, mas elas são apenas representação de essências. Quando o ser humano passou pelo acidente de trânsito que utilizamos como exemplo no capítulo anterior, foi colocado em prova algum dos seus sentimentos e os objetivos da sua existência. Isto é a essência do acontecimento e para viver esta prova é que o espírito o escolheu.
O livre arbítrio dos atos nasce na consciência do individualismo que o ser universal sabe que precisa vencer. Ele forma todo um “cenário” onde seja tentado a utilizar o amor de Deus com determinado individualismo (inveja, cobiça, nervosismo, preocupação) para que vença esta tentação.
A prova é o segundo livre arbítrio: o do sentimento. Depois que o ser encarna perde a sua consciência espiritual, os objetivos de sua existência eterna e prende-se ao individualismo e materialismo. Sua busca é apenas da satisfação individual e, por isto não pode mais ser senhor de seu destino.
“267. Pode o Espírito proceder à escolha de suas provas, enquanto encarnado?”.
“O desejo que então alimenta pode influir na escolha que venha a fazer, dependendo isso da intenção que o anime. Dá-se, porém, que, como Espírito livre, quase sempre vê as coisas de modo diferente. O Espírito por si só é quem faz a escolha; entretanto ainda uma vez o diremos, possível lhe é fazê-la, mesmo na vida material, por isso que há sempre momentos em que o Espírito se torna independente da matéria que lhe serve de habitação”.
O ser humano é um fantoche? Sim, toda a sua existência é comanda por Deus através do faça-se em cada micro fração de tempo. No entanto, Deus só dá a cada um de acordo com as suas obras, ou seja, apenas administra aquilo que o ser universal pediu antes da encarnação.
Desta forma, se o ser humano é fantoche, o é dele mesmo. Foi do seu próprio livre arbítrio antes da encarnação que surgiu a sua “vida”, os acontecimentos da sua existência. O destino do ser humano independe dele mesmo e dos outros homens. Ninguém, nem nada, é capaz de afetar o livre arbítrio do ser universal.
O Buda nos ensina que os sentimentos são como sementes que existem dentro de cada ser. Quando participa de uma ação universal (o faça-se de Deus) o ser universal rega determinada semente e a faz germinar, utilizando seus frutos para valorizar o acontecimento.
O agente de cada acontecimento é o ser universal antes da encarnação e não o ser humano. O homem que lhe deu uma fechada só conseguiu fazê-lo porque você e ele pediram para passar por esta situação como carma (reação a ação anterior) e como prova (escolha de sentimentos) para a elevação espiritual.
No momento que o acontecimento está sendo vivenciado cada ser universal envolvido rega uma determinada semente sentimental e utiliza seus frutos. Eles criarão uma verdade para o acontecimento que não é realidade, mas apenas uma compreensão individual. A desatenção, imperícia ou maldade do próximo surge da escolha sentimental daqueles que participam do acontecimento.
A partir daí a vida se transforma. Não mais uma seqüência de acontecimentos, mas sucessivas provas para que o espírito, exercendo o seu livre arbítrio do ato que pediu possa utilizar o seu livre arbítrio dos sentimentos para alcançar a elevação espiritual ou a satisfação material.
Podemos, então, afirmar que a vida material não é composta de atos animados, mas de atos espirituais. Viver não é um trabalho físico, mas sim sentimental. Para o espírito não é importante o que ele “faça”, mas sim o que ele sinta.
Por isto Jesus Cristo nos ensinou: o importante não é o que entra pela boca, mas o que sai do coração. A realidade para o ser universal é o fruto do seu livre arbítrio quando encarnado, ou seja, aquilo que ele constrói com os seus sentimentos.
Não existe acusações, ferimentos ou injustiças nos acontecimentos da vida carnal, mas existem espíritos que sentem estes sentimentos face aos acontecimentos do mundo. Ninguém pode ferir outro a não ser que este se sinta ferido; ninguém pode acusar a não ser que o outro se sinta acusado.
Promover a reforma íntima é mudar estes sentimentos. É reformar os sentimentos com os quais se “vê” os acontecimentos do mundo. Todos os outros ensinamentos são caminhos para criar uma compreensão lógica que permita a escolha sentimental.
A mudança não é dos conhecimentos, mas do sentimento. Se o ser humano prender-se a qualquer ensinamento como verdade absoluta o transformará em um dispositivo legal que servirá para julgar o próximo. Nada foi reformado a não ser o conteúdo dos ensinamentos, mas a essência permaneceu a mesma: eu sou o dono da verdade.